terça-feira, 31 de julho de 2007



Hable con ella...

O dia em que o blogueiro penetrou em um palacete do high society

Por Fabato

Jornalista está sujeito a tudo nesta vida. E a mim foi confiada a missão de entrevistar Carla Maverick Vargas (nome, obviamente, fictício), uma das divas do high society carioca de já finado antigamente. Algo, para fins de comparação, temporalmente, contemporâneo à queda do primeiro dentinho de leite do Barão de Mauá. Motivo de tão inusitada pauta? O fato de o clã da senhoura, residente no bairro do Flamengo, herdeiro da "Casa Maverick Vargas" – que fornecia picolé e paçoca para as forças Armadas desde a Guerra de Canudos – estar leiloando até mesmo as tomadas e maçanetas de seu luxuoso apartamento, de modo a saldar as dívidas que se acumulam há anos. O valor, módico toda vida, gira em torno de alguns milhões de reais. Bobagenzinha de nada.
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O leilão aconteceu há pouco tempo. Entre as preciosidades arrematadas, peças de Salvador Dali, Rodin, dentre outros, além de um aparelho de jantar de porcelana vietnamita rara para cerca de, pasmem!, 150 pessoas. Haja boca para tantos caviares embolorados, não é mesmo? O retrato que Picasso fez de Carla, para alegria da dona, foi o único objeto não comprado. A socialite nutre grande estima pelo quadro e havia, desde que bateram o martelo pela feitura do leilão, quase se rasgado toda diante da possibilidade de uma despedida. Não aconteceu.
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Pois bem, dinheiro arrecadado, parte da dívida saldada, considerável ágio sobre todas as peças. Nunca alguns artistas haviam sido tão valorizado no mercado de arte. E aí, no day after... Pinga a pautinha-mágica em minha mesa: “Vamos repercutir e publicar este fuzuê da alta sociedade! Hable con ella, Carlotinha!” Na mesma hora, pensei com os meus botões: “Será que, pelo menos, me deixarão passar do... Foyeur (ui...) do prédio?”. Não custava nada tentar.
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A assessoria de imprensa alegou que a socialite estava viajando. Mas não acreditei. Com alguns contatos aqui e acolá, em poucos minutos, já estava de posse do telefone do latifúndio suspenso dos Maverick Vargas. Disquei. Do outro lado, ecoou a voz do mordomo da família, Joaquim Gualberto I. “Dona Carla só poderá falar com o senhor a uma da tarde. De amanhã. Quando ela acorda”, disse o homem. No dia seguinte, claro, tornei a ligar no despertar de Cleópatra. Mais burocracia imperial. Fiz todo o charme possível para tentar burlar a guarda pretoriana construída ao redor do mito. E consegui falar com a velha manceba. “Hoje, às quatro da tarde, estarei em casa, já que meu advogado, Sr. Leocádio, virá aqui. Venha”, disse-me o mito Carlotinha. Uau! Estava assinada a permissão para penetrar na intimidade da pseudo-realeza pós-moderna.
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À hora combinada, prostrei-me diante do prédio. Eis que o meu celular, de forma insistente, desandou a vibrar. Era o tal assessor que havia negado a entrevista, sob a desculpa de uma possível “viagem” da socialite. “Soube que o senhor conseguiu a entrevista. Mas dona Carla resolveu não atendê-lo. A sua pauta caiu”, decretou, meio sem jeito. Só que eu já estava lá, diante de “Roma”. Como não tentar ver a Papisa? Fingi aceitar a nada boa nova do assessor, e me dirigi à portaria.
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Não é que autorizaram a minha entrada? “Assessorzinho bunda mole! Pensou que conteria o meu oxiúros jornalístico?”, falei comigo mesmo. Subi. De cara, fiquei 10 minutos preso no elevador, já que a porta do dito cujo estava trancafiada. O prédio faz aquele gênero antigo do... “Um apê por andar”. Passada a claustrofóbica espera, acabei recebido pelo inacreditável Joaquim Gualberto, o mordomo. Como descrever tal figura? Bem, o fato é que me senti transportado para... Sei lá... A corte de um dos Luíses, na França ainda absolutista. Como pensei, o vovô trajava um uniforme de criado-mor da fidalguia de idos séculos e ainda andava com a bunda magricela empinada, abusando de biquinhos, miados e indescritíveis maneirismos da ordem do... “Cago cheiroso sim, e daí?”. Segurei-me para não explodir em gargalhadas, logo no desembarque ao planeta desconhecido.
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“Estes porteiros são uns idiotas! Como deixam o senhor subir pela portaria dos fundos trazendo um Picasso?”, vociferou a criatura. “Mas eu não trago um Picasso. Vim entrevistar a sua patroa”, devolvi. Na mesma hora, notei que o monsieur caricatura havia trocado as bolas e me deixado subir por engano. Resolvi, então, dar um molho ao meu enredo, confundindo a memória daquela fraca figura: “Dona Carla mandou que eu viesse, e ainda disse que o advogado dela estaria comigo para a entrevista. Ele virá hoje, não é mesmo?”, questionei, cheio de segurança.
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Os anos de Tablado devem ter lustrado, com muito óleo de peroba, a caraça de mogno que me enfeita. Afinal de contas, como já dito, o advogado, realmente, iria ao palacete, conferindo veracidade à minha brincadeira. E Carla, ao decidir pelo cancelamento da entrevista, nitidamente, comunicara o fato somente à sua assessoria de imprensa, daí o desconhecimento do mordomo e a ligação recebida por mim, minutos antes. Para completar o furdunço, certamente, o Picasso sobrevivente à degola voltaria ao lar naquele instante, o que garantiu a minha entrada. A partir de então, momento em que passei a me considerar, totalmente, por cima da carne seca, o desconfiado homem até desmontou o seu afrescalhar exagerado, fazendo questão de me levar, cheio de deferência, à macro-sala de estar.
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Refestelei-me no sofá, já quase íntimo da família e de Joaquim Gualberto. Uma agora gracinha de senhor, o tal mordomo. Fui servido, reverenciado e paparicado. Aquele era, sem sombra de dúvida, um universo paralelo. Espécie de máquina do tempo que me levava ao passado, só que travestido de um visual over-trash toda vida. “Madame Carla se encontra no banho. Logo falarei da presença do senhor”, disse meu novo amigo do peito.
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Fiz que sim, com um semblante ordinaríssimo de nobreza recém-alcançada. Estava achando hilário aquele cenário empetecado e fora do real, altamente contrastante com a situação de leilão total da família. O criado figura, por si só, já insinuava esta contradição. Tantas poses, caras e bocas, frufrus e, talvez, há séculos não soubesse sequer a coloração de seu salário. Mas optei por ligar o “foda-se” para a iconoclastia e, no clima do Pan que já se foi, vivi a energia!
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Pois bem, lá estava eu, sem saber se a bela ou fera me receberia. Mas já amiguinho da principal ponte até ela. Um intruso no reino do balacobaco do pires na mão. Meia hora depois, pintou na área o advogado. Apresentamo-nos e engatamos um bom papo sobre a negociata que acontecera dias antes. Joaquim Gualberto nos assistia e achava tudo um encanto. Batia palminhas, ria de mansinho, seguindo algum tipo de script fidalgo esquizofrênico incompreensível. Praticamente, um amiguinho meu de infância. “Será que, realmente, conseguirei a entrevista?”, pensava eu, entre risos amarelos para ambos.
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Eis que, num dado instante, Leocádio, o lawyer, foi levado, pelo mordomo, para algum aposento além-corredor, de onde eu não havia passado. Carla, pelo visto, saíra dos sais de banho e o convocara. Depois que conversasse com o seu advogado, certamente, seria o momento da resposta à minha entrada no palacete. A partir da saída do homem rumo ao desconhecido, fiquei eu, sozinho, naquele salão de muitos e muitos metros quadrados, envolto em quinquilharias medievais e imerso em um sofá grená de maciez quase movediça. 10, 15, 20 minutos. Nada! “Abandonado até mesmo pelo meu grande amigo Joaquim Gualberto I, ó pai!”, lamuriava-me em sarcasmo.
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De repente... Um estrondo! Uma voz mais exaltada e alguma porta que bateu com força. Só faltou a clássica risadinha de bruxa para completar o cenário. Trovões sacudiram a janela. Os cinzeiros sobreviventes trincaram. As maçanetas não vendidas se sacudiram. Os candelabros italianos sem verba para velas caíram. E o pobre escriba que vos monopoliza, acorrentado àquele assento destruidor de colunas, deixou de ser o príncipe de antes para voltar à nada nobre condição de sapo cururu. Meu agora ex-amigo Joaquim Gualberto (como Gualbertinho fez isso comigo...?) voltou outra pessoa, ainda mais inclinado e arrebitado do que quando me atendeu, decretando: “Madame não vai recebê-lo! Por gentileza, o senhor queira se retirar!”, disse, rispidamente.
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“O que é isso, companheiro? E os nossos anos de amizade? Você, ao menos, vai me deixar fazer um xixi no toalete da família...”. As duas primeiras perguntas, obviamente, foram criadas para que tornassem este relato mais bonitinho. Agora... O pedido final, realmente, existiu. Já que, pelo barulho ouvido, a socialite havia ficado brava com a minha presença, ao menos eu poderia ver o troninho dos Maverick Vargas. Será que até o dito cujo entrara no leilão, tendo sobrado apenas um buraquinho para contar a história higiênica da família? Curiosidade jornalística, ora bolotas! Acabei vetado também neste quesito. Sem entrevista, nem alívios na privada arrematada. Joaquim Gualberto, o amigão de alguns minutos antes, voltara mesmo à condição de naja rebolativa. Buááá...
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No fim das contas, acabei, literalmente, conduzido pelo braço até a saída. Pelo menos, o caminho foi em direção à porta da frente, mesmo sem a pompa e circunstância do trato na sala de estar. Quando o elevador chegou, saltaram alguns homens uniformizados, carregando um belo quadro. Era ele! Lá estava a enigmática obra de arte: O velho amigo Picasso de guerra, que possibilitara a minha entrada. Nele, se via a única imagem de Carla Maverick Vargas com quem pude estar frente a frente. Olhei-a, fixamente. E posso jurar que ela deu uma piscadela marota para mim. Aquela ali tinha sido parceirona mesmo...
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De lá, voltei para a redação da revista. Certo de que, mesmo não tendo conseguido a entrevista ao vivo, ganhei uma grande história.

Qualquer semelhança com fatos e/ou pessoas reais, NÃO é mera coincidência. Comprem a revista Isto é ou Isto é Gente nesta quarta-feira e descubram de quem se trata...